- Vô, vô. O Senhor ouviu o jogo?
- Ouvi até o gol do São Paulo Fábio. Depois disso desliguei. Não tenho mais idade pra isso.
- Então você não sabe como acabou o jogo?
- Não sei não. Vou deixar você me contar, pela sua empolgação deve ter sido bom...
- Depois do gol do São Paulo a torcida continuou cantando né, e o Pelotas ali, em cima. Pressionando. Ja saiu pra cima na saida de bola e quase fez. Foi pressionando e pressionando até que a bola sobrou e o Fabio de Los Santos fez o 1°...
Nisso, o velho Jorge sai do ar e ao som do neto viaja lembrando do passado. Um passado glorioso, de vitórias, grandes jogadores. Lembra do maestro Ademir Alcãntara, dos gols do Flavio Minuano, e até do velho e saudoso Bedeu. E lembra até de agora: "Tem aquele goleiro bom, e um negrinho volante que não cansa nunca." Diz o velho, depois de ver 1 das partidas na segundona de 2005, Quando foi forçado o domingo inteiro pelo neto, ele voltou à Boca do Lobo depois de longos anos.
"Não da não, não tenho mais idade. Esse time mata a gente do coração."- Vôôôô! Tu ta me ouvindo?
- ôpa, tô sim Fabinho. Fala...
- Ta, depois do segundo gol tinha até gente chorando na arquibancada vô! Um velhinho igual ao senhor chorando por causa do gol. É muito bom ir à jogo, vamo no proximo?
- Ih, não vo Fabinho. Tu sabe que não tenho mais idade pra isso. E teu pai vai contigo, qual o problema?
- Nenhum. É que gosto das histórias que o senhor me conta.
- Garoto, se você tivesse vivido naquela época ia ter muitas histórias pra contar também. Aquilo era futebol de verdade.
- Ta vô, não começa não. Até parece que o Ricardinho não joga por amor à camisa...
- Não duvido que jogue. Sempre tem uns que respeitam o que fazem, mesmo hoje em dia. Mas é que naquele tempo...
- Vô, não! Pára. Assim você faz eu não gostar mais de ir pô.
- Bobagem filho. O Pelotas ta no teu sangue, na tua alma. Ir à Boca do Lobo vai fazer parte da tua vida. Mesmo que digam o contrario.
- Como assim, no meu sangue? Na minha alma?
- Ah, um dia tu entende isso. Só o tempo te explica o que é ser Pelotas.
- Mas vô, só vou saber o que é ser Pelotas quando tiver a tua idade? Com respeito, mas é muito tempo...
- Não Fabio. A cada dia tu vai saber o que é ser Pelotas. A cada partida que tu for, a cada gol que tu presenciares, a cada vitória e principalmente a cada derrota tu vai aprender mais um pouquinho sobre o Pelotas. Ainda mais hoje em dia, que as coisas tão pra la de ruins, e a gente aprendeu a vivenciar cada jogo, cada gol. Não que a gente não queira ganhar um titulo, levantar uma taça. Mas antes de pensar nisso, a gente vai vivendo cada segundo. A torcida do Pelotas é a unica que eu ja vi que apoia mais no momento ruim do que no momento bom. Isso é que é ser fiel.
- Mas vô, Fiel não é a torcida daquele outro time?
- Olha Fabio tu ainda é muito novo, é dificil de explicar essas coisas. Mas eu entendo que seja fiel aquele cara que faz uma visita ao amigo quando ele tá doente. E não quando ele tá de aniversário e vai ter festança.
- Ahn?
- Eu disse, tu é muito novo. Um dia tu entende...
- Um dia, um dia. Tudo é um dia! Que droga ser criança!
- Calma rapaz.
- To calmo vô. Ainda mais que hoje o argentino aquele do mesmo nome que eu salvou o Pelotas! Ia até pedir um autógrafo pra ele, mas o pai quis vir embora...
- Fica triste não, outro dia tu pede.
O garoto fica pensando naquilo tudo. Nessa história de entender o que é ser Pelotas todos dias. É uma confusão. Pra ele torcer é vestir a camisa do lobão e ir pra Boca.
O velho Jorge volta a viajar no tempo. Lembra que ele percebeu que era realmente Pelotas depois de uma derrota. E percebe que o neto ta percebendo isso justamente num momento tão ruim. "Como diria meu velho irmão: "Ser Pelotas é diferente Jorginho."
Quando volta das lembranças percebe que o neto adormeceu no sofá. Fica ali, observando. Começa a pensar que, mesmo sem forçar, o garoto resolveu torcer para aquele time que "tem um lobão grande vô!" Começa a pensar que aquele Clube tem quase 100 anos de história. Que milhares de pessoas passaram por ali e deixaram seu trabalho, seu suor, seu sangue. Deixaram um tempo precioso, deixaram lagrimas de tristeza e emoção.
Aquilo tudo lhe tirou o sono. Resolve mexer em velhos jornais e revistas guardados com carinho. Ali está boa parte da história do Pelotas.
Mexendo e mexendo percebe que é curioso como a torcida do Pelotas cresce em momentos de dificuldade. Parece que a torcida do Pelotas é uma "apoiadora" do Clube. Enquanto ele está jogando a 1° o torcedor escolhe uma partida ou outra pra encaixar no orçamento, no tempo e vai prestigiar. Mas na 2°, não! Não pode! Esse Clube não é de 2°! Nunca foi e nunca vai ser. Azar do orçamento, o tempo a gente arranja e a esposa leva junto. Mas o Pelotas não pode ficar na 2°! Vou virar sócio, pagar o ingresso, qualquer coisa. Mas ai o Pelotas não fica. E la vai a massa. Milhares todo santo jogo. Milhares que no frio, no sol, na chuva vão apoiar o Pelotas numa repescagem da segunda-divisão. Fundo do Poço dizem alguns. O melhor momento pra apoiar diz a torcida do Pelotas. O velho Jorge lembra do ano passado, quando alguns diziam que "ainda bem que são só 6 meses."
Se referindo à segundona. Não façam isso, os deuses do futebol estão ouvindo, pensava ele. E eles infelizmente não perdoam. E sem perceber o velho Jorge se pergunta em voz alta: "E agora deuses, nós merecemos? Merecemos voltar pro nosso lugar? Depois de tudo que passamos em tão pouco tempo a gente ainda não merece? Vocês são justos que eu sei..."
- Vô, com quem tu ta falando?Acorda o garoto sem entender nada.
- Ninguém não, Fabinho. Tava pensando em voz alta. Desculpa.
- Vô, posso te fazer uma ultima pergunta antes de dormir?
- Vai la, faz e vai escovar os dentes.